Uma pequena leitora...

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Versos à boca da noite

Sinto que o tempo sobre mim abate 
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva. 
Uma aceitação maior de tudo, 
e o medo de novas descubertas. 

Escreverei sonetos de madureza? 
Darei aos outros a ilusão de calma? 
Serei sempre louco? sempre mentiroso? 
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo? 

Há muito suspeitei o velho em mim. 
Ainda criança, já me atormentava. 
Hoje estou só. Nenhum menino salta 
de minha vida, para restaurá-la. 

Mas se eu pudesse recomençar o dia! 
Usar de novo minha adoração, 
meu grito, minha fome¿Vejo tudo 
impossível e nítido, no espaço. 

Lá onde não chegou minha ironia, 
entre ídolos de rosto carregado, 
ficaste, explicação de minha vida, 
como os objetos perdidos na rua. 

As experiências se multiplicaram: 
viagens, furtos, altas solidões, 
o desespero, agora cristal frio, 
a melancolia, amada e repelida, 
e tanta indecisão entre dois mares, 
entre duas mulheres, duas roupas. 
Toda essa mão para fazer um gesto 
que de tão frágil nunca se modela,
e fica inerte, zona de desejo 
selada por arbustos agressivos. 
(Um homen se contempla sem amor, 
se despe sem qualquer curiosidade.) 


Mas vêm o tempo e a idéia de passado 
visitar-te na curva de um jardim. 
Vem a recordação, e te penetra 
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço, 
do paletó, da guerra, do arco-íris; 
enroscam-se no sonho e te perseguem, 
à busca de pupíla que as reflita. 

E depois das memórias vem o tempo 
trazer novo sortimento de memórias, 
até que, fatigado, te recuses 
e não sabias se a vida é ou foi. 

Esta casa, que miras de passagem, 
estará no Acre? na Argentina? em ti? 
que palavra escutaste, e onde, quando? 
seria indiferente ou solidária? 

Um pedaço di ti rompe a neblina, 
voa talvez para a Bahia e deixa 
outros pedaços, dissolvidos no atlas, 
em País-do-Riso e em tua ama preta. 

Que confusão de coisas ao crepúscolo! 
Que riqueza! sem préstimo, é verdade. 
Bom seria captá-las e compô-las 
num todo sábio, posto que sensível: 

uma ordem, uma luz, uma alegria 
baixando sôbre o peito despojado. 
E já não era o furor dos vinte anos 
nem a renúncia às coisas que elegeu, 

mas a penetração no lenho dócil, 
um mergulho em piscína, sem esforço, 
um achado sem dor, uma fusão, 
tal uma inteligência do universo 

comprada em sal, em rugas e cabelo.

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